O ano é 1968. A paisagem é o pedaço de terra desenhado com linha política imaginaria chamado Brasil. Um pais território-fabula, que reúne em sua Republica Federativa diversidades do Oiapoque ao Chuì. A temperatura è amena, típico calor do Rio de Janeiro em setembro, com chuvas esparsas para refrescar o ambiente. O ar è pesado, cheiro de chumbo concentrado dos 04 anos que já duram a ditadura militar. Censura e revolta dividem o mesmo banco de ônibus com o ócio americanizado e sonho-embalado-à-la-burgues (e sem açúcar, por favor!). O sonho do carro, do álcool, do petróleo “è nosso” guia parte da população que nem mesmo sabe que a liberdade esta cerceada, que os tempos de censura extrema se aproximam, que abrir a boca é o mesmo que abrir-se uma vala.
Nota da autora – O termo ‘vala’ significa escavação destinada a acomodar canos de água ou esgoto ou gás; ou cova extensa que nos cemitérios serve para enterro gratuito. Da vala se escapa cortejando o exílio. Ou simplesmente se cala.
O ano é 1968, e a população brasileira se reúne em torno da TV para ver os grandes Festivais da Canção. Cabelos curtos e compridos, apoiados em cabeças e corpos jovens se reúnem nas platéias televisionadas ao vivo, olhos vidrados no palco onde o show acontece. Em preto e branco a memória dos festivais destila suas notas, timbres e ritmos: musica de entreter, de dançar, de ‘bossanovar’, de ser Popular e Brasileira, de insistir, resistir e denunciar, dizendo baby baby, linda, sabià, caminhando e cantando, vou voltar sei que ainda vou, sem lenço sem documento, olha a roda gigante, oh José, olha, olha, é proibido proibir! É proibido, proibir!
Caetano Veloso e os Mutantes sobem ao palco. Seus instrumentos saem da convenção musical aportando os pés no Tropicalismo incomodo, desestruturante, renovador. Caetano se apresenta um corpo esguio, bahiano, “com um figurino protopunk, combinando uma roupa de plástico a colares feitos de fios elétricos, correntes grossas e dentes de animais grandes, como um adereço de macumba futurista”, (WISNIK, 2005). Seu corpo-voz erótico reproduz os movimentos do encontro sexual, pélvis em movimentos arredondados, alternância entre tensão e relaxamento. Seu baixo-ventre incita ancestralidade e sua presença desejantemente andrógena canta:
Me dê um beijo, meu amor, Eles estão nos esperando, Os automóveis ardem em chamas, Derrubar as prateleiras, As estantes, as estátuas, as vidraças, louças, livros, sim…
‘Eros’, ‘logos’ vísceras e política exalam dos limites de sua pele. A garganta é órgão profundo, carne que abraça o ar, o timbre, a voz escura que ‘transando’ livremente com a intransigência – essa fiel descobridora de mudanças – diz:
Eu digo sim! Eu digo não ao não! Eu digo, é probido probir!
é probido probir!
é probido probir!
A platéia já de inicio grita, vaia, joga tomates, objetos, pedaços de madeira. A diferença, a visibilidade do impulso livre, os cabelos o cheiro o suor de Caetano, irritam, incomodam aborrecem parte da platéia que dà as costas aos músicos. As guitarras trazem fúria e não diversão, e nem elas param. Os Mutantes também voltam as costas à platéia, mas a musica não para, não para, não para, acende. “Eu digo è proibido, proibir”, exala Caetano com sua voz nó na garganta “Vocês não estão entendendo nada nada nada”. As palavras texto-discurso-canção de Caetano são plenas da fisicalidade negada à voz desde os metafisicos:
A desvocalização do logos inaugurada por Platão, além de fixar o primado ontológico do pensamento sobre a palavra, tende, sobretudo, a liberá-la da corporeidade do sopro e da voz. Radicada nos órgãos da respiração e fonação, a palavra alude às vísceras, ao corpo profundo onde fervem os humores da paixão. Por sua vez, tal como sugere Platão, o pensamento está na posição bem mais nobre da cabeça, naquela parte divina do crânio que constitui o cérebro. Para o filósofo, a centralidade do pensar acaba, assim, orientando o imaginário fisiológico referente ao falar. Quando é forçada a tratar do posicionamento corpóreo da palavra, a metafísica propende a colocá-la na boca, a pouca distância do cérebro, sem se ater a detalhes relativos à respiração. O papel subordinado da voz de vocalizar os significados se insere na coerência do desenho. (Cavarero, 2011)
O ano è 1968 e a voz de Caetano è pulsão, fonação, vísceras e política. É sexo, desejo de justiça, desrespeito, despeito. A platéia ainda vaia. Outra platéia aplaude. A voz parece que falha, mas ao que chamar de falha? A transparência sonora que deixa imaginar o músculo da garganta se enrolando ao som, deglutindo o desapontamento-vaia para recuspi-lo palavra dita sobre a base da musica:
Mas é isso que é a juventude que diz que quer tomar o poder? Vocês têm coragem de aplaudir, este ano, uma música, um tipo de música que vocês não teriam coragem de aplaudir no ano passado! São a mesma juventude que vão sempre, sempre, matar amanhã o velhote inimigo que morreu ontem! Vocês não estão entendendo nada, nada, nada, absolutamente nada. (…) Mas que juventude é essa? Que juventude é essa? Vocês jamais conterão ninguém. Vocês são iguais sabem a quem? São iguais sabem a quem? Tem som no microfone? Vocês são iguais sabem a quem? Àqueles que foram na Roda Viva e espancaram os atores! Vocês não diferem em nada deles, vocês não diferem em nada. E por falar nisso, viva Cacilda Becker! Viva Cacilda Becker!
Caetano discursa, a musica desanda, mas não para. A juventude platéia está dividida, separada em grupos onde a diferença é fonte de guerrilha e desencontro. O Festival, o concurso, a melodia já não importam – a obra está no pulsar pela transformação, na afirmação enquanto acontecimento performativo político – sua voz nó na garganta é mobilizadora. Caetano posicionou-se um corpo-voz em revolução. Ele não foi o único, não será o único. A platéia vaia. Vaia ainda, still, ancora. The people ainda, still, ancora. A vala ainda, still, ancora. Mas também o corpo, a curva, as coxas, garganta, espaços vazios e cheios ainda, still-still-still, ancora. Ela-ele disse, disse-cantou sim:
Sim eu digo sim! Eu digo não ao não! Eu digo é proibido proibir!!!
Diz Caetano, ela-ela-tu diz. Diz ainda. Still. Ancora (O som das guitarras vai ficando mais alto, mais, mais alto, até irradiarem uma dissonância final).
Bibliografia
Wisnik, G. Folha explica Caetano Veloso. Publifolha, São Paulo 2005.
Cavarero, A. Vozes Plurais – Filosofia da Expressão Vocal. Editora UFMG , Belo Horizonte 2011.
Immagine nella homepage: “Caetano Veloso nos idos de 1968” – credito DOC JB
Paula Carrara, born in São Paulo, Brazil, is a theatermaker and performer who explores intercultural theatrical practices and develops new forms of staging, with a focus on voice practices. As a performer she already worked among Cia.Les Commediens Tropicales, Cia. Das Atrizes, Georgete Fadel, Joao das Neves. She holds a master degree in Actor’s Studies from the University of São Paulo and publishes it as a book in 2016 [Body Voice Listening] – reflections about actor’s parctice. (Lamparina Luminosa) More: paulacarrara.com